Sobre os Direitos Humanos
A polêmica sobre os direitos humanos passa por problemas de definição. Os "direitos humanos" adquiriram um significado muito restrito adotado por algumas organizações internacionais preocupadas com a violência e a violação dos direitos de qualquer pessoa somente pelo estado e seus agentes, em resposta às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial que, nas décadas seguintes, foi reforçada pela violência de alguns estados contra seus inimigos políticos internos. Organizações e programas foram criados e essas definições aprofundaram suas raízes. Essas definições limitam o significado original da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948. Se concentram no agente da violação, e não na violação, nem na vítima.
A inadequação cresceu e gerou conflitos porque deixa de fora a violência contra o estado e seus agentes, assim como a maior parte do crime e da violência que acontece no Brasil e no mundo, que é feita por indivíduos e por organizações fora do estado. Deriva de um conceito arcaico e eurocêntrico de estado. Nela, que deu origem ao conhecido binômio "estado e indivíduo", cada um no seu lugar e nada no meio, não há espaço para organizações não públicas, independentemente de tamanho e importância, e crimes cometidos, violentos ou não. É uma visão que começou limitada no espaço e que parou no tempo.
No último século cresceram muito organizações intermediárias que superam, em tamanho, muitos estados e que também violam direitos humanos. Empresas como a Microsoft,com ativos superiores à soma dos PIBs de vários países latino-americanos, não encontram lugar nas teorias arcaicas da política, que dizer do estado. Elas produzem bens e serviços, contribuem para o desenvolvimento e, às vezes, violam direitos humanos e matam. A Union Carbide, uma grande multinacional, causou um desastre em Bophal, na Índia, em dezembro de 1984, quando uma fábrica subsidiária de pesticidas liberou 40 toneladas de gás tóxico que mataram entre três mil (dados confirmados, apenas) e mais de 15 mil (outra estimativa). Houve irresponsabilidade culposa: meses antes, cientistas da própria empresa alertaram para o risco de uma tragédia quase idêntica à que ocorreu; três anos antes, uma equipe de cientistas americanos também alertara sobre a ameaça de uma reação fora de controle na área de armazenagem. As mortes foram da ordem de grandeza da causada pelos ataques às Torres Gêmeas. Na definição arcaica, não é uma questão de direitos humanos. Então, o que é?
Empresas e sindicatos não são politicamente neutras e tanto as nacionais quanto as multinacionais participam da política de qualquer país, às vezes ilegalmente. Há, hoje, evidência sobre a participação da ITT no complot para desestabilizar e derrubar Allende. Sua contribuição manteve caminhoneiros e ferroviários em casa, sem trabalhar, contribuindo para a "crise do desabastecimento". A junção entre o público e o privado, às vezes, passa por pessoas. Há limites nada claros entre o público e o privado: John McCone, membro da diretoria da ITT tinha comandado a CIA e serviu como ponte entre a empresa e a agência, coordenando os esforços para impedir a
eleição de Allende e, depois, para derrubá-lo.
Há empresas cujos lucros superam o PIB de vários estados. Em 2006, os da Exxon Mobil,de 36 bilhões de dólares, foram maiores do que o PIB do Paraguai e os da Royal Dutch Shell, de 25 bilhões, superaram o do Uruguai. Algumas empresas empregam muito mais do que alguns estados. A Wal-Mart, em 2005, empregava um milhão e oitocentas mil pessoas, mais do que toda a população economicamente ativa adulta do Paraguai. Uma só empresa emprega mais do que um país. Todas tem segurança, própria e/ou terceirizada, tem seus espiões e punem funcionários. Só não tem, formalmente, território. Tecnicamente, não podem violar direitos humanos. Mas violam
A visão simplista "estado e indivíduo" exclui organizações poderosas entre os dois. É irreal e errada. A ênfase deriva de supostos arcaicos que forçam uma coincidência artificial entre os limites formais da geografia política e os do exercício efetivo do poder. Em todas as regiões, particularmente no Terceiro Mundo, há territórios que estão fora do controle do estado. Em alguns países com fortes antagonismos tribais, há áreas sob o controle de forças dissidentes – em alguns casos, por décadas. Há formas de organização política que controlam espaços formalmente sob a jurisdição do "estado nacional". As FARC são um exemplo. Manter a ficção da geografia política formal impede considerar os crimes e as violências cometidos por essas organizações como violações dos direitos humanos.
Não são apenas organizações políticas que podem ocupar espaços dentro da geografia de um estado. As próprias FARC são, cada vez menos, uma organização política e revolucionária e, cada vez mais, uma organização de traficantes, o mesmo se aplicando às organizações de para-militares, opostas às FARC. O mundo se confronta com ações muito violentas de organizações terroristas, como a Al Qaeda. Embora sejam organizações hierárquicas com ambições político-religiosas, algumas das quais atuam em vários países, tão pouco podem violar direitos humanos. Por definição. Nações deixadas sem estado, graças a decisões do imperialismo europeu, como os curdos, e outras, graças à opressão de um estado, como os chechenos,praticam atos de terrorismo. São nações, com uma organização, que lutam por um estado que não existe, cometem e sofrem crimes e violências, que, não obstante, só são violações de direitos humanos quando elas as sofrem e não quando elas as executam. Por essa definição arcaica. Não são, apenas, organizações políticas que controlam áreas formalmente dentro dos limites de um estado. Organizações criminais também o fazem e, da Colômbia ao Afeganistão é difícil dizer onde termina o político e começa o criminal. Em menor escala, o mesmo se observa dentro de áreas urbanas, quando organizações criminosas, sejam traficantes ou milícias, exercem certo controle e violam direitos da população residente.
Gláucio Ary Dillon Soares
Fonte: O Globo 24/02/2008
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