Quando o autor de Elite da Tropa 2, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, publicou o seu livro (no qual o roteiro do novo filme se baseia) ele certamente alargou a discussão sobre as Milícias e sua atividade na cidade do Rio de Janeiro. O filme, que segue com bastante precisão as palavras de Luiz Eduardo, tem o seu início nos dias de hoje, o que apresenta um problema para o espectador de alguma memória. Afinal, as situações narradas na película em sua maioria, datam dos anos de 2007 e 2008. Nada que estrague este grande feito do diretor José Padilha, mas dado que não houve problemas de se estabelecer datas claras no primeiro filme, ficamos sem entender o porquê desta omissão das datas oficiais na continuação.
Na tentativa de organizar um pouco os acontecimentos do filme com o que foi noticiado pela imprensa na época (fique atento aos links deste artigo, todos eles são notícias de época sobre os acontecimentos debatidos), falaremos aqui dos principais pontos levantados por Tropa de Elite 2 e seus correspondentes “reais”, dando um foco para a discussão que estes acontecimentos podem gerar. Desta forma, é importante avisar que, por mais que este artigo não cite o desenrolar de tramas pessoais e de toda ficção que aparece nas telas, vários eventos descritos aqui serão cruciais a trama por ele apresentada, portanto para o leitor de pouca memória (já que tudo o que falarei aqui foi fruto de intenso debate político nos últimos anos) ou que deseja ser surpreendido é melhor esperar até que se assista ao filme para retomar este artigo.
Em Tropa de Elite 2, logo no início do filme somos levados para um evento que ocorreu no dia 11 de Setembro de 2002, isto é, a rebelião de Bangu 1, quando Fernandinho Beira-Mar e os membros de sua facção, o Comando Vermelho, fizeram 8 reféns e tomaram uma parte do presídio. O objetivo? A execução de Uê, assim como de todos os líderes do Terceiro Comando, a facção rival. Na época, a governadora em poder, Benedita da Silva (relegada ao cargo depois que Anthony Garotinho resolveu tentar ser presidente) teria pedido a invasão do presídio, mas felizmente a polícia conseguiu negociar e evitar um novo Carandiru.
No filme, as coisas acontecem de forma um pouco diferente e que não vem exatamente ao caso aqui. O que importa dizer é que o fracasso da segurança pública carioca já havia sido percebido algumas dezenas de anos antes da rebelião de Bangu 1, que se tornou particularmente mais sucateada durante a terrível administração da família Garotinho, o que não impediu que sua esposa, Rosinha fosse eleita governadora poucos meses depois mesmo sem possuir qualquer tipo de experiência política.
Aqui faço um parêntese: Anthony Garotinho tinha um plano de segurança que parecia coerente quando ele assumiu o Governo do Estado, mas durante oito anos de seu mandato sem nenhuma queda evidente de índices de criminalidade é bastante claro que seu plano pode ser considerado um fracasso.
Voltando a questão baseada no filme, o que efetivamente a rebelião de Fernandinho Beira-Mar mudou no cenário da segurança pública do Rio?
Aparentemente não muito, por mais que a rebelião de Beira Mar, e a percepção nacional de que o tráfico era regularmente controlado a partir das prisões tivesse atingido a grande mídia, este fato não pareceu impactar muito a opinião pública. A bolha estourou sob o Governo provisório de Benedita da Silva, ainda que esta não possa ser inteiramente responsabilizada por ela, já que ficou menos de nove meses no cargo e o problema estourou bem no meio deste período. Importante dizer, Benedita não pareceu competente para lidar com o problema. Se os relatos sobre o dia são verdadeiros, ela teria se desesperado e ligado para o seu padrinho José Dirceu, presidente do Partido dos Trabalhadores, procurando instruções sobre o que fazer.
Benedita nega que tenha mandado o BOPE e as demais forças policiais invadirem o presídio, ainda que isto tenha sido reportado por algumas testemunhas. A verdade nesta questão se encontra para sempre perdida, já que nenhum dos lados tem provas contundentes sobre que ação a governadora teria tomado. O importante é que a negociação foi realizada e o massacre de presos foi evitado. Para mérito da Benedita, ela foi responsável por colocar o competente Zaqueu Texeira como Chefe da Polícia Civil, alguém que mais tarde, junto com Tarso Genro, Ministro de Lula, desenvolveria um eficiente projeto de segurança pública, o PRONASCI, de onde saiu a ordem para realizar as primeiras UPPs, que são apenas uma parte pequena deste programa, que em teoria deveria unir segurança com cidadania.
É importante mencionar, Rodrigo Pimentel, co-autor do primeiro livro e tido por muitos como a principal inspiração do Capitão Nascimento (interpretado magistralmente por Wagner Moura) já havia deixado o BOPE nesse período, ou seja, ele não tem nenhuma ligação direta com a rebelião de Bangu 1.
No mês seguinte, o principal responsável pelo sucateamento do estado fluminense durante este período, o radialista Garotinho, falhava em alcançar a presidência (amargando um distante terceiro lugar, depois de Lula ser eleito com a maior quantidade de votos em uma eleição brasileira) mas se provou capaz de manter o poder sobre o estado, através da candidatura de sua esposa, Rosinha Garotinho.
O ex-governador seria nomeado como secretário de segurança do Rio de Janeiro, uma piada de mau gosto para o estado, já que seu governo não obteve nenhum destaque na segurança pública. Não demorou muito para Garotinho levar a chefia da polícia civil o bandido Álvaro Lins, no filme representado de forma bastante livre pela figura do secretário de segurança e depois deputado Guaracy (que não é o chefe da polícia civil em Tropa de Elite 2), cuja a eleição foi financiada por criminosos (vale dizer existem paralelos sobre este problema no longa) e marcada pelo abuso de poder. Rocha, o PM corrupto que lidera as milícias também tem muitas características comuns com Álvaro Lins. No ano de 2008, já eleito como deputado estadual, a polícia federal foi capaz de prender Álvaro Lins em flagrante, que teve seu mandato caçado pela ALERJ. Um dos resultados desta investigação teria apontado Antony Garotinho como facilitador das operações da quadrilha, o que seria o início de sua decadência política no Rio. Do ano 2008 para cá, dezenas de processos criminais diferentes acabaram por atingir Garotinho e sua esposa Rosinha, entre eles coisas como: corrupção, formação de quadrilha, abuso de poder econômico, uso indevido de meios de comunicação e etc, processos estes que renderam os dois como inelegíveis em 2010. Mesmo sem poder concorrer ao Governo do Estado, Garotinho se elegeu candidato a deputado pelo PR e foi o segundo candidato mais votado no Brasil, perdendo apenas para o Tiririca, também do PR.
O filme obviamente não é tão direto em suas acusações, mas é fácil perceber as relações entre os personagens fictícios e suas contra-partes que os inspiraram. Terminada esta saga e breve passagem que foi Bangu 1, temos o assunto principal do longa metragem: as milícias.
Para aqueles que desconhecem, as milícias são grupos paramilitares, geralmente organizadas por policiais ativos e inativos, bombeiros, agentes penitenciários e até traficantes de drogas. Elas costumam cobrar uma mensalidade dos moradores das comunidades onde atuam para fornecer uma suposta segurança além de uma série de outros serviços. As milícias são verdadeiras máfias e são mais organizadas que o tráfico de varejo, que não tem capacidade de articulação. A milícia se infiltra na política e no poder público e os usa para seu próprio benefício, a revelia daqueles que moram nas áreas de sua atuação.
O novo filme do Capitão Nascimento mostra as milícias e a política de segurança pública como os principais adversários a um Rio de Janeiro mais seguro. Ele mostra também a luta de duas pessoas de pontos de vista quase opostos contra este mesmo problema. Uma destas pessoas é bem real, no caso, o deputado Fraga (Irandhir Santos) no filme, ou Marcelo Freitas no livro, claramente inspirado em Marcelo Freixo, deputado estadual do PSOL (re-eleito em 2010) que foi o responsável por trazer à luz os problemas das milícias, e por liderar a CPI das Milícias onde cerca de 226 políticos foram acusados de manter relações com estas organizações.
Em 2006, este fenômeno potencialmente desestabilizador cresceu assustadoramente no Rio de Janeiro. As milícias existem na cidade desde os anos 70, controlando algumas das favelas. Porém, num período de seis meses, esses grupos começaram a competir pelas áreas controladas pelas facções do tráfico. Em dezembro de 2006, segundo relatos, as milícias controlavam 92 das mais de 500 favelas da cidade.
Os primeiros relatórios sobre essa expansão recente e repentina descreviam as milícias como uma forma de segurança alternativa, que oferecia às comunidades a oportunidade de se livrar da dominação das facções do tráfico, garantindo sua segurança. No início, algumas pessoas das comunidades, comentaristas dos meios de comunicação, políticos e até o prefeito da cidade, Cesar Maia do DEM, deram seu apoio aos grupos de milícias. Mas não tardou para que emergissem histórias nas comunidades que contradiziam essa imagem. As milícias tomavam conta dos lugares com violência e depois sustentavam sua presença através da exigência de pagamentos semanais dos moradores para manter a segurança. Eles relataram que as milícias, como as facções do tráfico, impunham toques de recolher e regras rígidas nas comunidades, sob pena de castigos violentos em caso de descumprimento. As milícias controlavam o fornecimento de muitos serviços aos moradores, incluindo a venda de gás, eletricidade e outros sistemas de transporte privado.
Vale mencionar, até mesmo os menores acontecimentos do filme possuem uma base real, como o assalto realizado em uma delegacia de Seropédica pelos milicianos. Onde estes adquiriram armas para sustentar o poder paralelo.
O despertar lento que a política pública teve para o fenômeno das milícias até hoje parece resultar em um grande atraso para que estes grupos sejam devidamente detidos. Por mais que o crime organizado esteja sendo expurgado de diversas favelas da zona sul do Rio, as milícias continuam controlando a zona oeste sem maiores problemas.
Talvez o único avanço nesta questão tenha sido mesmo realizado por Freixo (PSOL) e seus aliados, como o relator da CPI Gilberto Palmares (PT), ao conseguir reunir provas suficientes para caçar os mandatos e impugnar os políticos envolvidos com a Milícia.
O mais notório nesta CPI foi perceber que um dos primeiros nomes a transparecer no documento foi o de Álvaro Lins, o mesmo que foi transformado em Chefe da Polícia Civil pelo Garotinho e que a partir de seu poder coercitivo, foi eleito deputado pelo PMDB (na época o partido de Garotinho). Na verdade, o governo de Rosinha Garotinho transpareceu ter uma base forte e sólida de apoiadores das Milícias, ainda que não existam evidências concretas que ligariam a governadora a estes grupos de forma tão direta quanto aquela retratada no filme. De toda forma, é importante ressaltar que havia sim uma cúpula importante envolta do governo do estado que era patrocinado por ações milicianas. Além do Chefe de Polícia de Garotinho, outros envolvidos notórios eram: o deputado Natalino Guimarães (DEM); o irmão dele, o vereador Jerônimo Guimarães (DEM) e o deputado Nadinho da Favela Rio das Pedras (DEM). Também foram citados na denúncia os vereadores eleitos em 2008 Carminha Guimarães (PT do B) e Cristiano Girão (PPS), da favela Gardênia Azul. Uma parcela considerável dos políticos denunciados já está presa. Vale mencionar também que Fortunato (interepretado por André Mattos) é um personagem que parece fazer alusão a duas figuras distintas: primeiramente ao deputado Nadinho, e em segunda instância ao Wagner Montes (que não tem uma relação confirmada com os milicianos).
E o Rio de Janeiro hoje, passados dois anos dos eventos retratados ao final do filme?
Poucas coisas são mais comentadas do que as UPPs, que de fato tem funcionado bem e até mesmo passaram a ser vistas como um modelo para o plano nacional de segurança pública. Acredito que existam alguns problemas com este modelo adotado no Rio, como a legitimização de comunidades que se encontram em áreas de risco ou de proteção ambiental, de toda maneira, o debate sobre a validade das UPPs e mesmo se elas são passíveis de serem aplicadas em outras regiões do país não cabem neste pequeno artigo.
O péssimo sistema carcerário continua funcionando, e nas palavras do Deputado Fraga: “O Estado gasta uma miséria com escola. Para manter uma criança no colégio, depende oito vezes menos que para manter um preso. O sistema carcerário, além de caro, é inoperante. Pior: opera em sentido contrário. Quem rouba um celular sai dele formado em crimes piores. E a população carcerária não para de crescer – dobra a cada oito anos, enquanto a população brasileira dobra a cada meio século.” Acredito que este pequeno trecho pronunciado pelo personagem do filme é um bom resumo de nossa ainda atual situação neste quesito.
Já as milícias se parecem quase imunes ao plano de pacificação do estado, tendo em vista que estas continuam intocáveis na zona oeste da cidade. Vale dizer, os responsáveis pela CPI das milícias até hoje são impossibilitados de fazer campanha nesta região do Rio e continuam a ser alvo de ameaças deste grupo.
Tropa de Elite 2 é verdadeiramente uma evolução clara do primeiro filme, tanto em termos cinematográficos quanto em termos de discussão política. Se o primeiro foi acusado de ser uma visão da direita (segundo o diretor, o filme foi mal compreendido), é possível que este seja cunhado como uma visão mais afinada para a esquerda, até mesmo por ter um candidato do PSOL como um dos personagens principais do filme.
Não acredito que um Tropa de Elite 3 seja produzido, pelo menos não parece haver uma necessidade direta com o término deste segundo filme, no entanto, se mais uma seqüência vier, podemos ter certeza que será ainda melhor se mantiver a mesma forma.Fonte:http://www.ambrosia.com.br/2010/10/14/tropa-de-elite-2-uma-falha-chamada-seguranca-publica/
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